Crítica | Dona Flor e seus Dois Maridos

1966, 1976 e 2017. Três anos conectados por uma única história. Apesar de décadas de distância, sobretudo entre o primeiro e o último , a força da trama de Dona Flor e Seus Dois Maridos continua a se ressignificar com o passar do tempo, trazendo novas perspectivas sobre um contexto que se renova através de gerações.
Em 1966, o icônico Jorge Amado escreveu um livro sem rodeios, desvendando a Bahia da década de 40, trazendo personagens e tipos dos mais diversos e que faziam jus às expressões e costumes da época. No ano de 1976, o enredo foi transformado em roteiro e adaptado para o cinema, conquistando 34 anos consecutivos como recordista de público e sendo eleito um dos 100 melhores filmes do cinema nacional. Agora, em 2017, Pedro Vasconcelos (O Concurso) decide trazer a história para a telona novamente, apostando em uma interpretação mais intimista e dinâmica.
“Eu não escrevi nada desse roteiro, apenas costurei os trechos do livro. Quem escreveu o roteiro foi Jorge Amado” diz o diretor sobre seu filme. Vasconcelos também acrescenta que em nenhum momento sua intenção foi comparar-se ao filme de 76 - dirigido por Bruno Barreto, com José Wilker e Sônia Braga no elenco principal - e sim trazer uma perspectiva totalmente diferente, baseada em sua própria experiência com o espetáculo de teatro que dirigiu, inclusive ao lado de Marcelo Faria - que vive o papel de Vadinho.
As costuras feitas por Vasconcelos dedicam-se a mostrar, com a ajuda de movimentos elaborados de câmera, fluidez de sequências e trilha sonora consoante com cada emoção pretendida durante o filme, as muitas camadas de Flor, brilhantemente interpretada por Juliana Paes, que é constantemente moldada pela sociedade baiana da década de 40. É a vida da doce e sedutora professora de culinária e a dicotomia de sua vida que interessam no longa; a mulher dividida entre desejo e moralidade, entre amor carnal e amor cordial, entre tranquilidade e intensidade, entre seus dois maridos.
Falando neles, Marcelo Faria , interpretando o primeiro marido, boêmio e abusivo, e Leandro Hassum que dá vida à Teodoro,o segundo marido respeitoso e tradicional, desenvolveram muito bem o contraste entre dois homens tão diferentes e souberam usufruir das particularidades de cada um para atingir o tom caricato e incisivo de Jorge Amado.
Marcelo Faria empresta à Vadinho - o marido morto, que retorna como um fantasma para viver ao lado da esposa casada pela segunda vez - um carisma não explorado pelo personagem interpretado por Wilker, no filme de 76. Esse carisma constrói no espectador algo próximo aos sentimentos de Flor, uma dicotomia entre o brilho da espontaneidade e os atos inaceitáveis que não podem ser ignorados.
Já Hassum, veste a pele de um personagem inteiramente diferente dos que geralmente costuma interpretar, mas não deixa de emprestar um humor sutil na construção formal de Teodoro.
A características da sociedade baiana da época é introduzida a partir de incursões na trama, que completam e dão sentido ao desenvolvimento da personagem principal, Flor. O foco de Pedro Vasconcelos traz muito do teatral, tanto nas reações quanto nas falas explícitas dos personagens. A câmera e a trilha sonora são dois instrumentos cinematográficos explorados pela direção e que tornam o filme interessante e divertido de assistir.
Em pleno século XXI, onde as discussões sobre a liberdade e a sexualidade feminina ainda são lutas constantes, Dona Flor e seus dois Maridos representa uma releitura de uma mulher moderna presa em uma crise moral contra os valores da sociedade de sua época. É o retrato de uma mulher que não se contenta apenas com o que foi imposto, um ser complexo que exige respeito e prazer, carinho e intensidade. “Você não é completa sem os dois”, diz Vadinho em determinado ponto do filme, mostrando analogamente que a jornada de Flor tinha conclui-se a partir do momento em que ela aceita o que quer e pode transformar.
Definitivamente um filme que tem um propósito mais leve que o anterior, disposto a te fazer rir, chorar e se emocionar sem perder as deixas para a reflexão e o retrato da profundidade que o cinema brasileiro é capaz de criar.

Direção: Pedro Vasconcelos
Elenco: Juliana Paes, Leandro Hassum, Marcelo Faria
Nacionalidade: Brasil
Duração: 1h 48min
Data de lançamento 2 de novembro de 2017